"De Maria Assunção diziam o seguinte: Manuel Eraclio Carrillo, o menino que um dia seria seu pai, sonhou com ela ao meio-dia, aos doze anos, quando caiu do cavalo. (…) quando, febril e com cara de fantasma, ele se sentou na cama e disse: 'Eu vi a Virgem'". Assim começa este romance histórico com passagens de realismo mágico que me cativou.
La Virgen Carrillo (A Virgem Carrillo) conta a história de Maria Asunción Carrillo Fálcon, prima irmã e amor oculto de Francisco Solano Lopez, o Karai-guasu (grande senhor) do Paraguai, antes da Guerra da Tríplice Aliança. O livro narra a vida de Maria Asunción e sua família, permeada com histórias relacionadas a alta classe paraguaia, religiosidade, o poder da época no Paraguai no século XIX e amor.
Com belas e fluidas descrições, Mabel Pedrozo me encantou e nos leva por parte da cultura paraguaia. Se um livro representasse o que eu desejava com esse desafio literário, seria este livro. Um texto cheio do ser paraguaio, de seu cocido quemado (bebida típica de lá) e impregnado com o Guaraní (uma das línguas oficiais deste país).
No decorrer da história, vemos os típicos "moral e bons costumes" de uma alta sociedade super católica cheia de hipocrisia. Também, o texto trata do preconceito com os povos indigenas mostrando que ao mesmo tempo que tentam rebaixá-los, são também parte deles. Entre o misticismo e a realidade, a autora adiciona sabor a história documentada.
Apesar de ficção, as personagens principais são reais. Nas biografias de Francisco Lopez, bem como em alguns registros há referências a María Asuncíon, seus pais e familiares. Utilizando uma personagem histórica que mexe com as emoções paraguaias, este livro é uma história de amor, mas não como se espera.
Na verdade, é uma história de amor à família e crítica a sociedade de uma ex-colonia européia. A relação entre pai e filha de María Asuncíon e Manuel Eraclio é descrita de uma forma muito bonita e emocionante pela autora.
Sozinha, Dona Magdalena serviu-se de mate. Seu filho mais velho correu curvado em direção aos doze degraus que levavam à casa. No galpão, Tapé foi recebido pela alegria morena de seu povo. - Que Deus te livre e te guarde - a mãe o abençoou sem demonstrar angústia, mas o filho notou, na estante dos santos da sala de jantar, o botão de uma vela acesa diante da imagem de São Miguel Arcanjo. O padroeiro dos Viana de Larios Galván.
Francisco Solano Lopez Carrillo e a Guerra da Tríplice Aliança
Para um melhor contexto, especialmente para quem não se lembra da parte histórica, Francisco Solano Lopez é um personagem controverso. Ora é pintado como herói, ora como um ditador.
Paraguai teve diversos avanços sobre o seu governo, diminuindo o analfabetismo, modernizando o exército. O seu patriotismo até a hora da morte é sempre valorizado. Mas também, prendeu e fuzilou muitas políticos, juízes, sacerdotes, e seus próprios familiares.
Resumidamente, com o pensamento de colocar o Paraguai como uma das potências economicas da região (superando o Brasil e a Argentina), Francisco Solano se aliou ao governo do Uruguai. Em um cenário de diversas disputas e a ameaça ao "Equilíbrio do Rio da Prata", a Guerra da Tríplice Aliança (Guerra do Paraguai) surgiu quando Francisco Solano declara guerra ao Brasil pela intervenção de tropas brasileiras em questões uruguaias. Com os desdobramentos da Guerra, Paraguai foi massacrado, e a guerra terminou com a sua morte em campo de batalha.
Tapé e Maurícia, ambos de origem indígena, é outro casal que tem sua história de amor contada de forma belíssima no livro. Eles ainda têm alguma liberdade para se tocarem sem a bênção de ninguém além deles mesmos. No entanto, dependem da permissão dos empregadores brancos para viverem em paz.
Não contar a ninguém sobre o nada que tinham , piorou as coisas. Eles se ignoraram primeiro. Com isso bastaria, eles acreditavam. E foi pior. Eles se viam sem se olharem. Nem mesmo as estradas vermelhas entre Villa del Rosario e Assunção, com o céu no meio, os riachos quebrando seus espelhos nas costas dos carpicós, conseguiram libertar seus desejos.
Confesso que nas partes finais, eu fiquei um pouco perdida na questão mística, mas nada que desmereça o livro. Terminei o livro pensando em uma lista de pessoas que adorariam este livro. Desejando que tivesse uma versão traduzida para que eu pudesse presentear.
Uma boa leitura para quem quer conhecer um pouco da história e dos costumes paraguaios e se envolver com os personagens.
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Nota: Todas as citações do livro mencionadas acima são traduções livres feitas por mim, após leitura completa do livro.
Sobre a Escritora
Mabel Pedrozo (1965-2022) é uma escritora é jornalista paraguaia nascida em Assunção. Ela é conhecida por seu trabalho jornalísticos e seus textos que trazem o jopara (linguagem coloquial que mistura guaraní e espanhol, comum na capital paraguaia). Publicou diversos livros de contos, poesia e novelas, além de ser fundadora da Casa del Escritor- Escritor Róga, para a divulgação de literatura de todos os idiomas do Paraguai.
Outros Livros: Mujeres en el teléfono y otros cuentos” (1997), “Debajo de la cama” (2000), “Multiplicada” (2001), “Juego de sábanas” (2003), “Las arrugas de la virgen” (2010), “Hilván de lunas” (2017) e “La virgen del carrillo” (2021),
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